quarta-feira, 16 de março de 2011

Chapeuzinho Vermelho - Grimm


E esta é a versão dos Irmãos Grimm, de 1813/1815. Vejam as diferenças:

Era uma vez uma menina tão doce e meiga que todos gostavam dela. A avó, então, a adorava, e não sabia mais que presente dar a criança para agradá-la. Um dia ela presenteou-a com um chapeuzinho de veludo vermelho.
O chapeuzinho agradou tanto a menina e ficou tão bem nela, que ela queria ficar com ele o tempo todo. Por causa disso, ficou conhecida como Chapeuzinho Vermelho.
Um dia sua mãe lhe chamou e lhe disse:
- Chapeuzinho, leve este pedaço de bolo e essa garrafa de vinho para sua avó. Ela está doente e fraca, e isto vai fazê-la ficar melhor. Comporte-se no caminho, e de modo algum saia da estrada, ou você pode cair e quebrar a garrafa de vinho e ele é muito importante para a recuperação de sua avó.
Chapeuzinho prometeu que obedeceria a sua mãe e, pegando a cesta com o bolo e o vinho, despediu-se e partiu.
Sua avó morava no meio da floresta, distante uma hora e meia da vila.
Logo que Chapeuzinho entrou na floresta, um Lobo apareceu na sua frente.
Como ela não o conhecia nem sabia que ele era um ser perverso, não sentiu medo algum.
- Bom dia Chapeuzinho - saudou o Lobo.
- Bom dia, Lobo - ela respondeu.
- Aonde você vai assim tão cedinho, Chapeuzinho?
- Vou à casa da minha avó.
- E o que você está levando aí nessa cestinha?
- Minha avó está muito doente e fraca, e eu estou levando para ela um pedaço de bolo que a mamãe fez ontem, e uma garrafa de vinho. Isto vai deixá-la forte e saudável.
- Chapeuzinho, diga-me uma coisa, onde sua avó mora?
- A uns quinze minutos daqui. A casa dela fica debaixo de três grandes carvalhos e é cercada por uma sebe de aveleiras. Você deve conhecer a casa.
O Lobo pensou consigo: "Esta tenra menina é um delicioso petisco. Se eu agir rápido, posso saborear sua avó e ela como sobremesa”.
Então o Lobo disse:
- Escute Chapeuzinho, você já viu que lindas flores há nessa floresta? Por quê você não dá uma olhada? Você não está ouvindo os pássaros cantando? Você é muito séria, só caminha olhando para frente. Veja quanta beleza há na floresta.
Chapeuzinho então olhou a sua volta, e viu a luz do sol brilhando entre as árvores, e viu como o chão estava coberto com lindas e coloridas flores, e pensou: "Se eu pegar um buquê de flores para minha avó, ela vai ficar muito contente. E como ainda é cedo, eu não vou me atrasar”.
E, saindo do caminho, entrou na mata. E sempre que apanhava uma flor, via outra mais bonita adiante, e ia atrás dela. Assim foi entrando na mata cada vez mais.
Enquanto isso, o Lobo correu à casa da avó de Chapeuzinho e bateu na porta.
- Quem está aí? - perguntou a velhinha.
- Sou eu, Chapeuzinho - falou o Lobo disfarçando a voz - Vim trazer um pedaço de bolo e uma garrafa de vinho. Abra a porta para mim.
- Levante a tranca, ela está aberta. Não posso me levantar, pois estou muito fraca. - respondeu a vovó.
O Lobo entrou na casa e foi direto à cama da vovó, e a engoliu antes que ela pudesse vê-lo. Então ele vestiu suas roupas, colocou sua touca na cabeça, fechou as cortinas da cama, deitou-se e ficou esperando Chapeuzinho Vermelho.
E Chapeuzinho continuava colhendo flores na mata. E só quando não podia mais carregar nenhuma é que retornou ao caminho da casa de sua avó.
Quando ela chegou lá, para sua surpresa, encontrou a porta aberta.
Ela caminhou até a sala, e tudo parecia tão estranho que pensou: "Oh, céus, por quê será que estou com tanto medo? Normalmente eu me sinto tão bem na casa da vovó...”.
Então ela foi até a cama da avó e abriu as cortinas. A vovó estava lá deitada com sua touca cobrindo parte do seu rosto, e, parecia muito estranha...
- Oh, vovó, que orelhas grandes a senhora tem! - disse então Chapeuzinho.
- É para te ouvir melhor.
- Oh, vovó, que olhos grandes a senhora tem!
- É para te ver melhor.
- Oh, vovó, que mãos enormes a senhora tem!
- São para te abraçar melhor.
- Oh, vovó, que boca grande e horrível à senhora tem!
- É para te comer melhor - e dizendo isto o Lobo saltou sobre a indefesa menina, e a engoliu de um só bote.
Depois que encheu a barriga, ele voltou à cama, deitou, dormiu, e começou a roncar muito alto. Um caçador que ia passando ali perto escutou e achou estranho que uma velhinha roncasse tão alto, então ele decidiu ir dar uma olhada.
Ele entrou na casa e viu deitado na cama o Lobo que ele procurava há muito tempo.
E o caçador pensou: "Ele deve ter comido a velhinha, mas talvez ela ainda possa ser salva. Não posso atirar nele”.
Então ele pegou uma tesoura e abriu a barriga do Lobo.
Quando começou a cortar, viu surgir um chapeuzinho vermelho. Ele cortou mais, e a menina pulou para fora exclamando:
- Eu estava com muito medo! Dentro da barriga do lobo é muito escuro!
E assim, a vovó foi salva também.
Então Chapeuzinho pegou algumas pedras grandes e pesadas e colocou dentro da barriga do lobo.
Quando o lobo acordou tentou fugir, mas as pedras estavam tão pesadas que ele caiu no chão e morreu.
E assim, todos ficaram muito felizes.
O caçador pegou a pele do lobo.
A vovó comeu o bolo e bebeu o vinho que Chapeuzinho havia trazido, e Chapeuzinho disse para si mesma:
“Enquanto eu viver, nunca mais vou desobedecer minha mãe e desviar do caminho nem andar na floresta sozinha e por minha conta”.

(conto retirado de: http://www.usinadeletras.com.br/exibelotexto.php?cod=2056&cat=Infantil)

Chapeuzinho Vermelho - Perrault


Esta é a versão de Charles Perrault, de 1967, de Chapeuzinho Vermelho:

Havia, numa cidadezinha, uma menina que todos achavam muito bonita. A mãe era doida por ela e a avó mais ainda. Por isso, sua avó lhe mandou fazer um pequeno capuz vermelho que ficava muito bem na menina. Por causa dele, ela ficou sendo chamada, em toda parte, de Chapeuzinho Vermelho.
Um dia em que sua mãe tinha preparado umas tortas, disse para ela:
 – Vai ver como está passando tua avó, pois eu soube que ela anda doente. Leva uma torta e um potezinho de manteiga.
Chapeuzinho Vermelho saiu em seguida para ir visitar sua avó que morava em outra cidadezinha.
Quando atravessava o bosque, ela encontrou compadre Lobo que logo teve vontade de comer a menina. Mas não teve coragem por causa de uns lenhadores que estavam na floresta.
O Lobo perguntou aonde ela ia. A pobrezinha, que não sabia como é perigoso parar para escutar um Lobo, disse para ele:
– Eu vou ver minha avó e levar para ela uma torta e um potezinho de manteiga que minha mãe está mandando.
– Ela mora muito longe? – perguntou o Lobo.
– Oh! sim, – respondeu Chapeuzinho Vermelho. – É pra lá daquele moinho que você está vendo bem lá embaixo. É a primeira casa da cidadezinha.
– Pois bem, – disse o Lobo, – eu também quero ir ver sua avó. Eu vou por este caminho daqui e você vai por aquele de lá. Vamos ver quem chega primeiro.
O Lobo pôs-se a correr com toda a sua força pelo caminho mais curto. A menina foi pelo caminho mais longo, distraindo-se a comer avelãs, correndo atrás das borboletas e fazendo ramalhetes com as florzinhas que encontrava.
O Lobo não levou muito tempo para chegar à casa da avó. Bateu na porta: toc, toc.
– Quem está aí?
– É sua neta, Chapeuzinho Vermelho – disse o Lobo, mudando a voz. Eu lhe trago uma torta e um potezinho de manteiga que minha mãe mandou pra você.
A bondosa avó, que estava na cama porque não passava muito bem, gritou:
– Puxe a tranca que o ferrolho cairá.
O Lobo puxou a tranca e a porta se abriu. Ele avançou sobre a pobre mulher e devorou-a num instante, pois fazia mais de três dias que não comia. Em seguida, fechou a porta e foi se deitar na cama da avó. Ficou esperando Chapeuzinho Vermelho que, um pouco depois, bateu na porta: toc, toc.
– Quem está aí?
Chapeuzinho Vermelho, ao escutar a voz grossa do Lobo, teve medo, mas pensando que a voz de sua avó estava diferente por causa do resfriado, respondeu:
– É sua neta, Chapeuzinho Vermelho, que traz uma torta pra você e um potezinho de manteiga que minha mãe lhe mandou.
O Lobo gritou para ela, adocicando um pouco a voz:
– Puxe a tranca que o ferrolho cairá.
Chapeuzinho Vermelho puxou a tranca e a porta se abriu.
O Lobo, vendo que ela tinha entrado, escondeu-se na cama, debaixo da coberta, e falou:
– Ponha a torta e o potezinho de manteiga sobre a caixa de pão e venha se deitar comigo.
Chapeuzinho Vermelho tirou o vestido e foi para a cama, ficando espantada de ver como sua avó estava diferente ao natural. Disse para ela:
– Minha avó, como você tem braços grandes!
– É pra te abraçar melhor, minha filha.
– Minha avó, como você tem pernas grandes!
– É pra correr melhor, minha menina.
– Minha avó, como você tem orelhas grandes!
– É pra escutar melhor, minha menina.
– Minha avó, como você tem olhos grandes!
– É pra ver melhor, minha menina.
– Minha avó, como você tem dentes grandes!
– É pra te comer.
E dizendo estas palavras, o Lobo saltou pra cima de Chapeuzinho Vermelho e a devorou.

MORAL:
Vimos que os jovens,
Principalmente as moças,
Lindas, elegantes e educadas,
Fazem muito mal em escutar
Qualquer tipo de gente,
Assim, não será de estranhar
Que, por isso, o lobo as devore.
Eu digo o lobo porque todos os lobos
Não são do mesmo tipo.
Existe um que é manhoso
Macio, sem fel, sem furor.
Fazendo-se de íntimo, gentil e adulador,
Persegue as jovens moças
Até em suas casas e seus aposentos.
Atenção, porém!
As que não sabem
Que esses lobos melosos
De todos eles são os mais perigosos.

(conto retirado de: http://www.dubitoergosum.xpg.com.br/a7.htm)

quarta-feira, 9 de março de 2011

O que você já aprendeu na escola

Recebi esse texto por e-mail. Não sei quem é o autor, mas é muito interessante.


Fique calmo.
Você tem cinco anos de idade e só queremos que você sente nesta cadeira desconfortável por 5 horas.
Não começaremos por tanto tempo. No início há mais intervalos e períodos lúdicos. Vamos aumentando aos poucos.
Portanto, fique calmo.
Amanhã você também sentará nesta cadeira desconfortável por mais algum tempo.
De segunda a sexta e, às vezes, no sábado também. Embora por menos tempo.
E quando finalmente aprender a sentar nesta cadeira desconfortável por cinco horas, lá na frente estará um sujeito que falará durante as cinco horas sobre assuntos que, possivelmente, não interessam a você.
Não é culpa dele. Talvez nem ele saiba mais o que está fazendo ali.
Pois ele, antes de você, já teve a fase em que sentou-se, durante anos, em uma cadeira desconfortável durante cinco horas, ouvindo alguém falar sobre coisas que não lhe interessavam.
E, depois de passar por um processo desses, repetidamente, é bem possível que ele já não ligue mais para isso. Note como ele fala calmamente.
Assim, fique calmo.
Você não está aprendendo Matemática. Não está aprendendo Língua Portuguesa. Não está aprendendo Ciências. Isso é só a fachada.
O currículo está para o verdadeiro ensino como o restaurante sem movimento está para a lavagem de dinheiro de algum negócio ilícito. É só a fachada.
O que você aprende de verdade é que você deve suportar situações insuportáveis por períodos longos do seu dia, repetidamente ao longo de anos de sua vida.
A cadeira desconfortável em que você se senta por milhões de minutos está moldando sua bunda para o que bilhões de adultos costumam chamar de cotidiano.
Esse aprendizado tornará mais fácil e cômodo aceitar aquilo que se espera de você daqui a alguns anos.
E o cara lá na frente é uma espécie de boneco de treinamento. A exemplo dos simuladores, ele não pode feri-lo de verdade. Mas está condicionando você para a coisa mais importante nesta vida:
RESPEITAR A AUTORIDADE. A AUTORIDADE SÓ FALA A VERDADE.
E, pode acreditar, você terá oportunidade de respeitá-la e também de ser autoridade, às vezes simultaneamente, às vezes como boneco de treinamento. Ser, nessa máquina, uma engrenagem. Que é movida mas que move também
Sem respeito à autoridade, o mundo como o conhecemos não funciona. E todo o mundo sabe como o mundo, tal e qual o conhecemos, é ótimo. Todos o adoram. Ninguém quer engrenagens que se movam em algum sentido inesperado.
Então. Fique calmo. E sentado.
Outra coisa importante: errar é horrível.
Esperamos que você só acerte nesta vida.
Sabemos que ter medo de errar prejudica a criatividade, pois a criatividade presume eventuais erros.
Mas também ninguém espera que todo o mundo seja criativo. Afinal, o que seria da autoridade se todo o mundo começasse a ser criativo e tivesse liberdade para errar sem medo?
Assim, mais fachada: parece bonito ensinar alguém a só acertar, mas de verdade o que você tem que aprender mesmo é o medo de errar.
O mercado não admite erros.
Não havíamos tocado neste assunto, ainda.
O mercado.
Mas saiba que o mercado é a cola que une a sua bunda a essa cadeira desconfortável. Afinal, você precisa, um dia, ser capaz de ser um empregado e fazer parte do mercado.
É por isso que você está sentado. Sentado e calmo.
Fique calmo.
E, depois de anos de cadeira, ouvindo alguém falar de coisas que não lhe interessam em absoluto, você passará por uma coisa chamada vestibular.
O vestibular verifica se você ouviu e absorveu o suficiente de coisas desinteressantes e se, assim, será capaz de, mais tarde, vender seu tempo para projetos que também não lhe interessam necessariamente. E, assim, ser um empregado exemplar.
Isso tudo depende de:
  • sua capacidade de ficar sentado em uma cadeira desconfortável, que indica sua predisposição a suportar situações insuportáveis
  • sua capacidade de não questionar a autoridade, tão firmemente desenvolvida e fixada ao longo de anos que você nem a percebe
  • sua capacidade de se interessar por assuntos que não o interessam realmente, que é uma espécie de auto-engano que as grandes empresas costumam chamar hoje de proatividade e de sinergia
Se você tiver absorvido tudo isso, certamente passará no vestibular. Muito embora – e mais uma vez entramos no tema da fachada – o vestibular pareça medir coisas como Matemática, Língua Portuguesa e Ciências.
Podemos concluir, grosso modo, que quanto mais concorrida a vaga de um curso, mais ela exige das três capacidades acima arroladas.
Matemática, Língua Portuguesa e Ciências são índices apenas. Na verdade, estão para o verdadeiro ensino como o hambúrguer está para o cadáver do boi.
Ainda assim, FIQUE CALMO.
Sim. Finalmente, você entrou em uma faculdade.
PARABÉNS!
Mais alguns anos de cadeira desconfortável. Só para garantir.
Mas agora você não precisa ficar sentado nela durante tanto tempo. Não é preciso. Seu espírito já se dobrou. Possivelmente, ele está sentado neste momento, suportando alguma situação insuportável, mesmo quando você está em pé.
Bem calmo.
É bem provável que essa faculdade em que você entrou tenha como slogan algo semelhante a “preparamos para o mercado” com a foto de um modelo sorridente abaixo.
Não confunda: ele não é um estudante da instituição, mas os dentes daquele sorriso são o mercado.
Para as fachadas mais humanas, o slogan é algo como “preparamos para a vida”. Que, considerando que vida e mercado hoje são quase sinônimos, dá na mesma.
“Preparamos cidadãos” – e seus equivalentes – quer dizer “ensinamos você a usar o Procon”. Porque, no mercado, o bom cidadão é o consumidor. Talvez a única vez que você tenha questionado o sujeito que fala coisas desinteressantes lá na frente tenha sido dizendo algo como: “Ei, eu pago o seu salário! Sou um consumidor!”. Parabéns, você aprende rápido.
Pois se você é incapaz de consumir, não é um cidadão de primeira classe. Talvez nem seja um cidadão.
E o mercado pede que você seja um cidadão. E o máximo a que o seu questionamento será capaz de chegar irá até estas três letrinhas: SAC (Serviço de Atendimento ao Consumidor).
Se as empresas quisessem atender pessoas, colocariam gente de verdade atendendo aos telefonemas. E não gravações ou outras pessoas lendo scripts e preparadas pelo mercado.
Por isso, o mercado – de olho no futuro – cola sua bunda à cadeira desconfortável durante horas.
Para aprender a suportar situações insuportáveis, respeitar a autoridade e para nivelar sua criatividade tão aceitavelmente quanto a volúpia de um gato castrado.
Para que assim, um dia, você possa contribuir e, só então, consumir: realimentando o processo.
Eu sei que, aos cinco anos de idade, é difícil entender o que está acontecendo.
Mas peço que você, por alguns instantes e nos seguintes, FIQUE CALMO.
Em alguns anos você vai aceitar tudo perfeitamente.

segunda-feira, 7 de março de 2011

Marcovaldo: O bosque da rodovia - Ítalo Calvino


O frio possui mil formas e mil modos de se movimentar no mundo: no mar corre como uma manada de cavalos, no campo se lança como uma nuvem de gafanhotos, na cidade, como a lâmina da faca, corta os caminhos e atravessa as frestas das casas não aquecidas. Na casa de Marcovaldo, naquela noite, havia acabado os últimos pedaços de lenha, e a família, toda encapotada, olhava na lareira o final da brasa se apagar, e das suas bocas as fumacinhas que saíam a cada respiro. Não falavam mais nada, as nuvenzinhas falavam por eles. A mulher as lançava longas, longas como suspiros; os filhos as expiravam absortos como se fossem bolas de sabão; e Marcovaldo as expelia para o alto aos pulos como relâmpagos que logo desapareciam.
Por fim Marcovaldo se decidiu: – Vou atrás de lenha, quem sabe se não encontro um pouco. – Colocou quatro ou cinco jornais entre o casaco e a camisa para servir de escudo contra as investidas do vento, escondeu debaixo do casaco um longo serrote, e assim saiu pela noite, seguido pelos longos olhares esperançosos de sua família, lançando ruídos a cada passo e com o serrote que de vez em quando mostrava a ponta pela gola do casaco.
Ir atrás de lenha pela cidade: que nada! Marcovaldo se dirige logo para um pedaço de jardim público que ficava entre duas ruas. Tudo estava deserto. Marcovaldo analisava as nuas plantas uma a uma pensando na família que o esperava rangendo os dentes...
O pequeno Miguelzinho, rangendo os dentes, lia um livro de fábulas, pego emprestado da biblioteca da escola. O livro falava de um menino, filho de um lenhador, que saia com um machado, para pegar lenha no bosque. – Olha onde é preciso ir, – disse Miguelzinho – no bosque! Ali sim que tem lenha! – Nascido e crescido na cidade, nunca tinha visto um bosque, nem de longe.
            Dito e feito, combinou com os irmãos: um pegou o machado, um o gancho, outro uma corda, despediram-se da mamãe e saíram a procura de um bosque.
            Caminharam pela cidade iluminada pelos lampiões e não viam nada além de casas. De bosques, nem a sombra. Encontraram alguns raros pedestres, mas não ousavam perguntar-lhes onde havia um bosque. Assim chegaram no ponto onde acabavam as casas da cidade e a rua se tornava uma rodovia.
            Dos lados da rodovia, os meninos viram o bosque: uma abundante vegetação de árvores estranhas cobria a vista do horizonte. Tinham os troncos muito finos, retos e tortos, e as copas chatas e extensas, com as mais estranhas formas e as mais estranhas cores, quando um carro passando as iluminava com os faróis. Ramos no formato de pasta de dentes, de rosto, de queijo, de mão, de barbeador, de garrafa, de vaca, de pneu, cobertos por uma folhagem com letras do alfabeto.
            – Eba! – disse Miguelzinho – Este é o bosque!
            E os irmão olhavam encantados a lua surgir entre aquelas estranhas sombras: – Como é bonito...
            Miguelzinho logo os chamou de volta ao motivo pelo qual estavam ali: a lenha. Assim abateram uma arvoreta com forma de uma flor amarela, fizeram-na em pedaços e a levaram a casa.
            Marcovaldo voltava com a sua pequena carga de ramos úmidos e encontrou a lareira acesa.
            – Onde vocês o pegaram? – exclamou indicando os restos de outdoor que, sendo de madeira compensada, queimava muito mais rápido.
            – No bosque! – responderam as crianças.
            – E que bosque?
            – Aquele na rodovia. Está cheio disso!
            Vendo que era tão fácil assim, e que precisavam de novo de mais lenha, valia a pena seguir o exemplo dos meninos. Marcovaldo saiu de novo com o seu serrote e foi até a rodovia.
            O agente Astolfo, da polícia rodoviária, era um pouco míope e à noite, correndo na moto durante o seu trabalho, precisaria usar óculos, mas não revelava isso por medo de ser prejudicado na sua carreira.
            Naquela noite, foi denunciado o fato de que, na rodovia, um bando de moleques estava derrubando os outdoors. O agente Astolfo partiu para inspecionar.
            Nos lados da rodovia, a selva de figuras estranhas, sugestivas e gesticulantes acompanhava Astolfo, que as observava uma a uma, revirando os olhos míopes. Eis que, de repente, à luz do farol da moto, surpreendeu um moleque pendurado em um outdoor. Astolfo parou: – Ei, você! O que faz aí? Saí logo daí! – Aquele não se mexeu e lhe mostrou a língua. Astolfo se aproximou e viu que era a propaganda de um queijo, com um garotinho que lambia os beiços. – Ah, certo. – disse Astolfo e partiu em grande velocidade.
            Um pouco depois, na sombra de um grande cartaz, ele iluminou um triste rosto assustado. – Alto lá! Não tente fugir! – Mas ninguém fogiu: era um rosto humano com sinais de dores pintado no meio de um pé cheio de calos: a propaganda de um anticalos. – Oh, foi mal – disse Astolfo e foi embora.
            A propaganda de um comprimido contra enxaqueca era uma gigantesca cabeça de homem, com as mãos nos olhos pela dor. Astolfo passou e o farol iluminou Marcovaldo pendurado em cima do outdoor enquanto, com o seu serrote, tentava cortar um pedaço de madeira. Cego pela luz, Marcovaldo ficou encolhido e imóvel, pendurado em uma orelha daquela cabeça, com o serrote que já havia chegado no meio da testa.
            Astolfo analisou bem a cena e disse: - Ah, sim: comprimidos Estapa! Uma propaganda eficaz! Muito bem bolada! Aquele homenzinho lá em cima com o serrote corresponde à dor de cabeça, que corta a cabeça ao meio! Eu entendi na hora! – E foi embora satisfeito.
            Tudo era silêncio e gelo. Marcovaldo deu um suspiro de alívio, se arrumou no desconfortável tripé e retomou o seu trabalho. No céu iluminado pela lua se propagava o abafado rumor do serrote contra a lenha.



Conto retirado do livro Marcovaldo ovvero le stagioni in città ou Marcovaldo ou as estações na cidade. Tradução minha.


domingo, 6 de março de 2011

De volta


            Aqui estou eu de volta ressuscitando o meu blog. Sei que o deixei um pouco abandonado nesses últimos dias, mas é tudo vindo junto, volta às aulas, emprego novo, que fica um pouco difícil arrumar tempo para tudo o que eu gostaria... Mesmo assim, sempre que possível arrumarei um tempinho para postar algumas coisas por aqui.
            Por enquanto, fiquem com as sábias palavras de Calvin sobre o que é o emprego nas nossas vidas (não consegui encontrar a tirinha em português então vai em inglês mesmo):

 
Quadro 1: Cara, que linda manhã de verão, hein, pai!? Que pena você não poder ficar em casa e aproveitá-la.

Quadro 2: Quando você ficar velho, lamentará nunca ter aproveitado dias como esses. Mas isto ainda está longe, e até lá ainda há muito trabalho a ser feito.

Quadro 3: É, é melhor ir trabalhar. Tenha um longo e bom caminho engarrafado! Talvez você volte a tempo de ver o pôr do sol... se conseguir ficar acordado. Até mais!

Quadro 4: Como eu odiaria ter um filho como eu.